No conto "Diante da Lei", Franz Kafka apresenta um homem do campo que deseja ar a Lei, mas é impedido por um porteiro. A promessa é que, talvez um dia, ele possa entrar — mas esse dia nunca chega. O homem espera até a morte, sem nunca ultraar aquele obstáculo. É uma parábola sobre a angústia humana diante das instituições, da verdade, da justiça ou da salvação. Mas, ao revisitar o conto, foquei em outra camada interpretativa que me parece menos comentada e profundamente atual.
E se o obstáculo não fosse o sistema, mas apenas o porteiro?
E se a Lei nunca foi realmente inível, apenas sequestrada por um funcionário medíocre que inflou seu ego com microautoritarismo?
Chamo essa leitura de "síndrome do porteiro". Trata-se daquilo que, no Brasil, conhecemos bem: o prazer de quem ocupa uma posição intermediária, às vezes baixa, mas se sente poderoso o bastante para sabotar a vida alheia. O porteiro de Kafka, nessa chave de leitura, não é o mensageiro do sistema, mas um pequeno tirano. Ele impede o o não por dever, mas por vaidade, por medo de perder o controle, talvez até por puro sadismo. Ele goza do poder de manter alguém esperando eternamente. Se pudesse, o porteiro de Kafka seria o ditador do mundo, mas, como não pode, torna-se o ditador máximo de sua pequena porta.
O homem do campo, por sua vez, é a imagem de quem acredita na legitimidade dessa autoridade. Ele nunca ousa ultraar a barreira. É como muitos de nós diante da burocracia, da fila, da ordem que não pode ser contestada. Somos levados a pensar que o bloqueio vem de cima — mas, muitas vezes, quem nos impede está mais perdido do que nós; quem nos violenta foi tão violentado quanto nós; quem nos enlouquece são os nossos iguais em hierarquia, são nossos irmãos, tão doentes e loucos quanto nós...
Kafka era um crítico silencioso da burocracia e dos sistemas desumanizados, mas talvez também soubesse que o terror cotidiano nasce nos detalhes. O diabo mora nos detalhes. Não é preciso um tribunal sombrio, um rei ou um deus — basta um funcionário de portaria com desejo de domínio. Um ser comum, mas que se torna monumental para quem está sob sua tutela.
Essa leitura desloca a crítica de Kafka da inatingibilidade da Lei para o teatro do poder cotidiano. Quantas vezes não somos barrados por alguém que se sente juiz do que não compreende? Quantas portas foram fechadas por pequenos personagens que jamais deveriam ter esse poder? E, pior, quantas vezes acreditamos que o erro estava no sistema inteiro, no rei ou até em Deus, quando o problema era intencionalmente criado por apenas um "porteiro inflado"?
Ao final do conto, quando o homem agoniza, pergunta por que ninguém mais tentou entrar. O porteiro responde: "Esta entrada era destinada só a você. Agora, vou fechá-la." A ironia cruel é que talvez ele nunca precisasse de permissão para entrar. Mas foi convencido, pela performance do porteiro, de que não podia. Talvez o inferno não seja um castelo de chamas, mas uma portaria onde se espera para sempre. Talvez o diabo não seja o soberano do inferno, mas apenas o seu recepcionista — e sua tortura seja fazer-nos acreditar que a punição está além da porta, quando na verdade já estamos vivendo o inferno na espera.
Kafka nos dá uma imagem eterna da ividade diante do poder. Mas talvez também nos ofereça um aviso: desconfie do porteiro.