Romance de estreia da moçambicana Paulina Chiziane, “Balada de amor ao vento” é um livro poético demais, triste demais, bonito demais. Desses que sem cerimônia entram na vida do leitor e se aconchegam na memória e no coração. Conta a história de Sarnau, uma jovem do interior de Moçambique, apaixonada por Mwando (leia-se “muando”). Mulher de força extraordinária, seu amor é proporcional aos perrengues pelos quais a. O livro trata de dois temas tabus: poligamia e lobolo (prática de a família da noiva pagar certa quantia à família do noivo). Mwando estuda em colégio católico e seu caminho é o do sacerdócio. Deve ordenar-se padre em poucos anos. De férias volta para sua terra natal e, numa festa que reúne toda a gente do vilarejo, conhece Sarnau, aquela que vem abalar suas convicções religiosas. Amam-se. (“Emudecemos de repente.
As mãos encontraram-se. Veio o abraço tímido. Trocamos odores, trocamos calores. Dentro de nós floresceram os prados”.)
Mas o entusiasmo mútuo aos poucos perde a força. Mwando deixa o colégio e a a evitá-la, cheio de desculpas. Cobrado, revela o que está rolando: foi prometido por sua família para se casar com uma moça muito bonita. Desmoronou-se o castelo de fantasia de Sarnau. Mas o acaso dá o ar de sua graça e os acontecimentos entram em cena, como o casamento da protagonista com um príncipe herdeiro. Que mudança! De escanteada a princesa consorte. E há mais reviravoltas no caminho. Mas chega de spoilers, leitor. Ande pelo universo dessa escritora, cuja linguagem tem cadência e musicalidade próprias, e uma beleza ímpar (“Nossos corpos agitavam-se na agonia dos bosques incendiados”; “Veio a destronca e a sementeira. Os cafezais eram alinhados de uma forma artística e, em pouco tempo, a floresta medonha cedeu lugar a uma roça de um verde bonito, verde-sangue, verde-dinheiro, regado com o suor dos condenados”;
“Em Angola [aonde Mwando foi parar], há um pedaço de terra adubado de sangue. Por baixo de cada sombra reside um preto anônimo, confirmam os mais velhos”.
Paulina Chiziane foi a primeira escritora moçambicana a publicar um romance em seu país, justamente esse “Balada de amor...”, lançado em 1990. Em 2023, tornou-se a primeira mulher africana a receber o Prêmio Camões, a maior honraria para autores de língua portuguesa. Nascida em 1955, em Manjacaze, cresceu na capital Maputo. Participou ativamente da luta pela independência moçambicana. Lembremos que Moçambique foi colônia de Portugal entre 1498 e 1975. Logo depois da independência, vieram duas décadas de guerra civil. Com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) no poder, o regime queria certa literatura engajada (de escritora de um partido político, de uma causa), da qual Chiziane não aceitou o figurino. Decidiu-se por “carreira solo”, livre das amarras institucionais ou da militância partidária. Depois do livro de estreia, vieram “Ventos do Apocalipse”, “O alegre canto da perdiz” e “Niketche – uma história de poligamia”, do qual já tratei aqui. Uma escritora e tanto. A literatura de língua portuguesa e seus leitores agradecem por seu talento.
Fernando Bandini é professor de Literatura ([email protected])